A saga em busca da primeira habilitação – Parte 3


Placa[4]



De algum modo, passei pelo exame psicotécnico com atestado de pessoa normal.
 Não me informaram quanto tirei na prova de lógica, o que me deixou bastante chateada, pois sempre é bom saber sobre o desempenho nas coisas dessa vida (pensando como estudante de engenharia admito que realmente gosto de ter dados na mão).



Testes médico e psicotécnico em perfeito estado, lá fui eu para o meu primeiro dia de aulas teóricas na autoescola quando descubro que esse seria um dia “branco” em que só
nos dariam um chá de cadeira e as felizes informações de que devíamos chegar sempre meia hora antes de a aula começar e que nossas digitais seriam verificadas três vezes por dia.
TRÊS VEZES POR DIA.
Ao entrar na autoescola, no horário do intervalo e na saída também teríamos que colocar o dedo naquele dispositivo que verifica nossas digitais. E não obstante, ainda teríamos uma hora de intervalo. Era tanto tempo desperdiçado ali por conta das regras do DETRAN que cheguei a ficar em choque. Ok, isso é Brasil, um tanto de burocracia já é de praxe, mas o tanto de tempo perdido era realmente de apavorar. Para minha sorte eu tinha as ilustres opções de voltar para casa (já que ficava a uns 5 minutos de distância andando a pé) ou iria matar o tempo no shopping que também ficava pertinho. Eu não cogitava sinceramente que iria conseguir me socializar por lá e muito menos achava que teria a sorte de fazer algum amigo que durasse.
Mas a vida não é tão previsível assim, passam os dias e ela continua a me surpreender.
Quando finalmente chegou o dia em que de fato teríamos uma aula de verdade, flagrei-me entediada com a ideia de ir pra um lugar em que eu não conhecia ninguém para assistir uma aula de um assunto sem graça que eu facilmente poderia aprender sozinha lendo a apostila chatinha que arrumei. Vesti-me sem vontade nenhuma de sair e nem me preocupei muito com o que estava colocando no corpo, tanto que peguei a primeira combinação de calça e camisa que encontrei no armário. Acabei achando a ideia de voltar pra casa muito ruim, porque uma vez que eu voltasse, seria um saco ter que sair de novo pra o mesmo lugar. Também não estava com humor pra ficar passeando e vendo as futilidades do shopping. A opção era embarcar durante aquela hora livre no livro que minha amiga havia me emprestado e eu não tivera tempo de ler a não ser as primeiras páginas. O título parecia remeter a algo romântico, “Amor em minúscula”, mas ao avançar por seu conteúdo percebi que se tratava mais de uma obra sobre reflexões de um solteirão convicto e me peguei imaginando se eu teria aquele temperamento se terminasse ficando pra titia, como dizem por aí das mulheres que não casaram ou não tiveram filhos.
Quando chego na autoescola e vejo a quantidade de pessoas me bate um friozinho na barriga. Eu pensava que seriam menos pessoas, mas pelo visto esse país tem muita gente querendo abandonar o transporte público e entupir as ruas das cidades. Após o ritual de pegar fila e verificar a digital (tarefa ao qual não me acostumei até o final das aulas pois meus dedos tinham notáveis problemas para fazerem o dispositivo maldito funcionar), decidi ir sentar-me numa das cadeiras do fundo. Dali eu poderia observar os seres humanos que aos poucos ocupavam as carteiras e mentalmente tomar notas sobre as características que mais se sobressaíam de cada um. Isso poderia tornar aquela coisa toda de aulas menos insuportável.
Para minha surpresa, ficar olhando para aquelas pessoas não foi lá tão divertido e logo desisti da ideia, nenhuma delas chamara minha atenção particularmente (a não ser uma senhora que se vestia de um modo um tanto esotérico com brincos de lua gigantes e estampa de oncinha por todo o lado). Abri meu livro e me concentrei nele, ficando quietinha para adentrar nas suas páginas como quem entra em uma realidade paralela que só era de meu conhecimento naquele instante. Quando vi, o professor havia chegado e assim ele passou uma hora e meia nos assustando com perguntas que sempre terminavam em duas ou mais alternativas em que apenas uma estava correta. Eram exemplos de conduta no trânsito e quem escolhesse a resposta errada, caso estivesse em uma situação real, corria potencial risco de morrer. Foi desse modo que me vi “morta” em milhões de formas possíveis de acidente de carro. Claro que o papel dele era de nos fazer medo e desistir dessa loucura de dirigir enquanto ainda era tempo.
Mas tenho essa coisa de não desistir fácil, essa coisa de mulher paraibana/pernambucana.
Passada a primeira parte da aula, chegou o momento que eu mais temia: o intervalo. Eu não sabia se tinha problemas em ficar na sala de aula durante esse tempo, mas resolvi arriscar. Saquei o livro da bolsa e deixei todos os outros correrem pra fila da digital de uma vez. Eu iria por último, não me importava com isso.
Para minha surpresa, um homem também ficou lá esperando a fila diminuir. Ele veio sentar ao meu lado e puxou conversa de forma forçadamente simpática.
- Hmm, esse Brasil, só aqui essas complicações todas. Tem fila pra tudo, né moça?
Meio desconcertada com a tentativa repentina de puxar conversa dele, acabei murmurando algo em concordância com ele e voltei para o livro. Mas de algum modo, ele não desistiu da ideia de puxar conversa.
- Ah e esse livro que você tá lendo aí? É melhor do que esperar a fila em pé, ficar assim aqui…
Já perplexa com a insistência dele, decidi largar o livro e dar uma chance pra um papo furado com um desconhecido qualquer que não parecia nada interessante, porém parecia desesperado por uma prosa boba.
- É, o livro é bom sim, não é grande coisa literária, mas distrai. Você gosta de ler?
- Hmm, não tenho lá muito tempo e…
- Ahaha, é a desculpa da maioria das pessoas que tem preguiça de ganhar um pouquinho de cultura nessa mente.
- …
- Desculpe, tenho o sério problema de não conseguir esconder bem aquilo que penso, mesmo quando é um tanto ofensivo.
- Ah, que nada, quando te vi hoje mais cedo já reparei que você parece uma pessoa bem inteligente, paciente e deve ser bem assediada também… E… Parece ser bem confiante de si mesma.
- Que engraçado como você tirou todas essas conclusões sem nem ter ouvido sequer minha voz. Chega a ser assombrante…
Realmente aquilo havia me chocado. Impressionante como o ser humano tinha essa natureza de assumir opiniões apenas olhando pro outro, formando esses “pré” conceitos iniciais (ok, isso está redundante, mas foi para ninguém confundir o que eu quis dizer). Era engraçado ouvir de uma pessoa que eu não sabia da existência até poucos minutos atrás que eu passava essa imagem. Mais tarde esse mesmo homem me disse que eu parecia saber que era superior a todos os outros dali e que eu parecia tranquila e muito segura de mim. Era de se espantar como eu fiquei surpresa com essas impressões. Porque eu podia ser muitas coisas, mas me achar superior ou ser muito segura não eram características minhas e não consegui parar de me perguntar o que passou aquela ideia para aquele desconhecido.
É de se assustar quando você se enxerga pelos olhos que não são seus.
Passada a burocracia da digital, resolvi descer e conversar na parte de baixo da autoescola porque ali perto tinha uma padaria e seria uma boa escolha pra matar o tempo. O homem, claro, seguiu-me, mas terminamos ficando pela escada porque chovia inesperadamente nas ruas de Recife. Ali, repousava um garoto magro que calculei ter mais ou menos a mesma idade que eu. Logo ele entrou na conversa e o que mais me chamou a atenção era seu sotaque. “Carioca?”, pensei. Pareceu mentira o quanto nos demos bem assim de repente, mas atribuo isso ao fato de sermos de exatas os dois. Num minuto descobri que ele também tinha gosto pelo sarcasmo e ironias e num instante seguinte já fazíamos piadas ocultas que o homem ali não era capaz de entender mesmo sendo sobre ele. Esse mesmo garoto foi o grande achado inesperado que a autoescola me deu. Um amigo que carrego até hoje e que gosto muito. Lembro de que quando estávamos saindo no fim do primeiro dia de aula ele perguntou meu nome, tentando aparentar que não estava sem graça.
- Ah, e, ei, como é mesmo teu nome? – disse ele rindo.
- Daniela! Não é tão difícil me encontrar no Facebook! – disse eu, rindo de volta.
- Certo! Eu sou o Julio, então você já vai saber que sou eu quando aparecer a solicitação lá no face.
- Certo! – rimos os dois e então fui embora. De fato, não demorou muito para ele me encontrar na famosa rede social e daí passarmos muitas horas conversando sobre tudo e sobre nada, de modo que em pouco tempo, parecia que já nos conhecíamos há anos e não há dias apenas. Fico imaginando as lembranças que passarão pela mente dele enquanto lê esse texto. Porque cada ser humano registra as memórias de acordo com sua mente e seu olhar, cada um vê a história pelo seu ponto de vista. É engraçado mostrar como eu vi as coisas e descobrir como as pessoas viram diferente de mim. Nesse mesmo dia, o homem que falou comigo pela primeira vez, foi junto comigo em parte do caminho para casa já que a parada de ônibus dele era próxima. Lembro de ter ficado encabulada porque ele não parava de ficar dizendo as impressões que teve de mim à primeira vista e isso tudo era bastante constrangedor. Não entendia porque ele achava que adiantava ficar soltando essa conversa para mim, já que eu obviamente não estava interessada em nada com ele, nem em amizade. E não pelo fato de eu ter julgado ele mal, mas bem, convenhamos, há modos e modos de se afastar uma fêmea instantaneamente e uma delas é parecer meio desesperado.
Quando o segundo dia da autoescola chegou, eu já não estava mais entediada para ir até lá. Porque pelo menos agora eu sabia que havia alguém divertido para conversar e quando menos esperei ainda surgiram novas pessoas legais. Assim, conheci umas garotas gente fina de lá, as únicas que tinham idade próxima a minha e pareciam legais mesmo, devo acrescentar.
Havia muitas mulheres casadas já e pessoas que eu não conseguia aferir uma cotação para idade, então me deixei não prever nada sobre elas. Os dias que se seguiram foram divertidos, com alguns passeios pelo shopping e conversas sobre o cotidiano de jovem na atualidade. Naquela troca de experiências, me descobri como sempre uma garota fora dos padrões normais, mas isso já não era surpresa para mim. O melhor das aulas da autoescola, porém, era quando acabavam e eu ia com minha amiga para caminhar na praia. Esse foi o período da minha vida em que fiz isso com mais frequência e se pudesse, faria diariamente. O mar tem um poder calmante incrível e agradeço muito por morar no litoral nordestino.
Quando dei por conta de mim, o último dia já havia chegado. E eu fiquei realmente triste de dizer tchau para todas aquelas pessoas. Mesmo aquelas com as quais eu não simpatizava muito. Eu sou dessas pessoas que se apega facilmente às coisas e aos lugares. Nunca me ensinaram a dizer adeus.
Sem falar de um professor que tive por lá, que mais parecia apresentar uma sessão de stand up comedy e não uma aula. Esse sim, tornou as aulas teóricas até engraçadas com seu jeito bem matuto do interior e tiradas que eram hilárias. Não acredito que ele vá chegar a ler esse post, mas de onde você estiver, José do Egito, saiba que lembrarei das suas aulas como uma das coisas mais loucas que presenciei nessa vida e penso que nunca esquecerei delas.
Então esse foi o resumo bem por cima de como foram as aulas teóricas. Muitas placas de trânsito que eu nem conhecia, um monte de regras também e finalmente reparei que aquelas luzinhas do carro são na verdade a seta e que existe diferença entre as faixas contínuas e as não contínuas. E claro, amarelo e branco tem significados diferentes na questão do tráfego.
Reparei nessas aulas que nessa minha vida de pedestre, eu era praticamente cega aos detalhes de direção de carros. Agora pelo menos, só tenho alguns problemas de visão, mas já consigo enxergar melhor.
No próximo post, contarei como foi fazer a preparação para a prova teórica e como é chegar lá no DETRAN para respondê-la. Garanto que vocês vão se surpreender com a burocracia desse país.
Ou não, se vocês forem céticos.

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