Caminhada na praia de Boa Viagem


Se você é uma moça simpática, metida a educada, sempre sorridente e por que não dizer, um tanto ingênua também, você nunca deve ir sozinha caminhar na orla da praia de Boa Viagem. Coisas bizarras podem acontecer a você. Tipo essas que eu vou contar nesse post.

praia de boa viagem
Parecia apenas um pacato fim de tarde na praia. As aparências enganam.
Era por volta das três da tarde quando eu ia embora pra casa. A parada em que eu pego ônibus na UFPE faz um calor infernal nesse horário. Geralmente eu pego dois ônibus para voltar, assim, fico bem perto do meu prédio. Mas hoje resolvi pegar um ônibus só, mas que me deixa a uma boa caminhada de distância, só que eu poderia descer na praia e andar um pedaço ali. Agi por impulso e subi. Eu estava num sono pesado e fui a viagem quase toda dormindo, acordando apenas quando passava perto do aeroporto de Recife. Não demorou muito e chegou a hora de descer na pracinha de Boa Viagem.
Ah, que delícia era aquela brisa! A cor do mar, o cheiro da maresia, o meu cabelo balançando ao vento. As ondas pareciam enevoar meus pensamentos e ao mesmo tempo, as coisas ficavam mais claras. Eu adorava ir ali, passar minhas horas contemplando a paisagem, vendo as pessoas passarem, em família, fazendo exercícios, casais apaixonados, cachorros passeando… Parecia um lugar de escapismo dessa nossa rotina chata e repetitiva, um lugar em que tudo parecia que podia se consertar. Era pra lá que eu ia quando queria pensar em soluções pra problemas que não pareciam ter resposta. Era uma tarde em que eu precisava me acalmar, porque eu estava meio inquieta e não entendia direito a razão.
Atravessei a rua, me despedindo da feirinha localizada na pracinha e comecei a andar pela orla, sem saber bem até onde eu iria. Eu deixaria minhas ideias me levarem e faria decisões instantâneas no decorrer do caminho. A primeira coisa bizarra foi um homem todo de branco, cheio de objetos que pareciam ter a intenção de prever toda sorte de futuro.
- Opa, moça, você poderia me dizer que horas são? – perguntou ele, olhando para mim.
- Claro, são 15:20h agora. – respondi, dando um sorriso amigável.
- Ah, então é hora de saber o que te aguarda! Venha, me dê sua mão, vamos ver nas cartas o seu destino e ler o que os búzios dizem pra você, querida! – falou entusiasmado o homem de branco.
Por um momento confesso que a ideia passou pela minha mente. Eu nunca tinha feito algo assim antes, consultado meu futuro usando esses artifícios. Seria uma experiência engraçada, talvez com respostas inesperadas, mas que provavelmente não iriam ser baratas. Quando pensei no custo do serviço, meu bolso decidiu por mim:
- Hmm, desculpe, eu tenho um compromisso, preciso ir. – e então tive minha deixa para continuar caminhando. Eu estava com meus fones de ouvido ligados nas alturas. Uma das minhas bandas favoritas tocava no volume máximo: Muse. Eu me deixava envolver pelas letras e caminhava, até rápido demais, considerando que eu estava sozinha e apreciando o lugar. De algum modo eu sentia uma urgência de andar, andar ali me fazia bem de certo modo, mas eu me sentia insegura sem companhia.
Os passos continuaram por mais uns bons minutos até que fui interrompida por uma horda de negros altos, de sunga, jogadores de futevôlei e que mais pareciam armários e não seres humanos. Alguns vestiam camisa, mas a maioria exibia o peito nu como se quisesse mostrar masculinidade. Eu estava constrangida, não sabia para onde olhar. E muito menos ouvia o que eles estavam dizendo. Tive que dar stop no som que eu escutava.
- …. sim, essa sim, é nível PROJAC! Querida, como é seu nome?? – perguntou o porta-voz dos homens, enquanto os outros não paravam de me olhar com um sorriso estranho no rosto. Alguns pareciam achar surpreendente o fato do porta-voz estar falando comigo do nada.
- Hmm, eu me chamo Daniela, por quê? – retruquei, num tom que era um misto de estranhamento e de curiosidade, devo admitir.
- Daniela! Dani! Você é uma flor, querida! Olha só, está vendo esse cara aí? Ele é jogador do Náutico, sabia?
E eu olhei incrédula para o menino do canto, que era o único branco ali, mais magro também que os outros e ele parecia bem sem graça, baixou os olhos que pareciam ser verdes para encarar o chão. Eu não entendia muito sobre o futebol local, então se ele era mesmo jogador ou não, eu jamais saberia.
- E esse outro ali! Jacaré! Grande jogador de futevôlei! Ganhou até campeonatos!!
E ele apontou para um dos homens parrudos que estava jogando naquele momento. Eu olhava e escutava educadamente tudo o que o porta-voz dizia, mas não entendia bem a razão de ele me falar de um site(que agora nem consigo mais lembrar qual era), falava dos jogadores, da trajetória deles…
- Querida, você é daqui de Recife? – perguntou ele sorrindo.
- Ah, bem, eu moro aqui desde sempre, mas sou paraibana. – respondi, ainda não entendendo bem por que eu estava ali tendo aquela conversa. Ou melhor, ouvindo aquele monologo.
- Mai, rapaz! Logo vi! Educada desse jeito, a moça só podia ser de outro lugar, as daqui não tem essa criação, essa simpatia, esse sorriso não! É assim que uma mulher tem que ser: PROJAC!
Eu ria constrangida com a situação, mas dessa vez eu ri porque achei uma piada muito engraçada. Para aquele homem, ser uma mulher de verdade era ser como as mulheres que aparecem na TV GLOBO. Bem, isso era bem o tipo de padrão que muitas pessoas ainda tinham na cabeça. Por mais idiota e fabricado que ele fosse.
- Sente aqui e veja o jogo, moça! Uma flor assim não deve ficar sozinha por aí, fique e assista a gente. – disse simpático o porta-voz da horda.
Eu era besta pra essas coisas, mas até eu fiquei desconfiada daquilo e resolvi dar um jeito de ir embora. Afinal, um monte de macho que eu não conhecia, vestindo sunga, não era bem o lugar certo para eu estar. Podia terminar se tornando uma coisa perigosa. Eu tinha que aproveitar que estava na praia e inventar qualquer coisa.
- Hmm, desculpe, eu tenho um compromisso, preciso ir. – e então tive minha deixa para continuar caminhando.
Andei mais um pouco. Dois eventos bizarros tinham acontecido num intervalo de tempo curto. Aquilo na verdade nem era tão incomum, homens vendo uma moça sozinha andando, sempre pensam nela como um alvo fácil. As mulheres de Recife tem fama de serem difíceis e até mesmo grossas. Quando uma delas fica desorientada como eu, torna-se presa certa. E é nessas horas que elas, mesmo ingênuas, precisam dar um jeito de fugir dessas situações mais esquisitas, pra não dizer altamente perigosas.
Continuei a caminhar com esses pensamentos tomando minha cabeça, enquanto os fones voltavam a preencher meus ouvidos junto com o som do mar, formando uma melodia confortável de apreciar. Eu estava ali e ao mesmo tempo muito distante, pensando e pensando como eu gostaria que meu namorado estivesse ali comigo, quando um hippie puxa o fio do meu fone.
Ele era alto, tinha uma barba grande, dentes maltratados, barriga coberta de pelos escuros e um jeito de quem parecia não tomar um banho desde que nasceu. Ele estava acompanhado por outros hippies de aparência similar. Apesar da imagem, eles pareciam ter praticamente a minha idade. E estavam sorrindo todos.
- Como é seu nome? – perguntou o jovem hippie.
- Estão me fazendo muito essa pergunta hoje. Que estranho. – disse eu, surpresa que respondia a mim mesma e não a pergunta dele.
- Como pode ser estranho querer saber o seu nome, moça? Diga, por favor.
E puxou minha mão. O homem puxou minha mão e olhou nos meus olhos.
- Você gosta mais de flores, borboletas ou corações?
- … Tanto faz… – eu definitivamente não sabia lidar com aquilo. A única coisa que eu queria saber era como eram possíveis tantas situações e conversas bizarras naquele intervalo de tempo. Eram 16:15h da tarde.
- Então farei um anel com flores e borboletas que são lindas como você!
E com um fio de metal, o hippie começou a trançar algumas formas, que no final, tornaram-se um anel ajustado ao tamanho do meu dedo.

WP_20130827_00420130827171403 O anel que o hippie me fez.
- Ah, está pronto! Agora deixe eu mostrar minha arte a você.
- Mas… eu não posso pagar, não tenho dinheiro…
- Calma, eu fiz esse anel pra você olhar a minha arte, moça. Veja, esse é o shopping 1 e esse é o shopping 2.
E ele me mostrou seus brincos e penduricalhos variados, a maioria feitos nesse material que ele torcia com um alicate.
- Aqui é coisa boa, feito com aço, o mesmo material de aparelho de dentes! Dê uma olhada boa. Eu e meus amigos aqui somos hippies. Ser hippie é uma coisa boa, vivemos pelo mundo. Cada um aqui é de um lugar. Eu vim de São Paulo. Aquele é do Pará…
- Quanto custa esse aqui?
Um dos brincos me atraiu. Pensei em comprar e ir embora dali o mais rápido possível. Algo me incomodava. Eu sentia que não era seguro. Talvez se eu comprasse algo, ele me deixasse ir.
- Esse aí é vinte reais.
- Opa, não tenho tanto assim… Preciso ir…
- Ah, calma moça, pra quê tanta pressa? Você sorri tanto, é tão educada.. Tudo que um homem quer é uma mulher assim, uma verdadeira joia… Você é da Federal? Eu vendo lá também.
Acenei com a cabeça confirmando e logo em seguida percebi a besteira que tinha feito.
- Você é de lá! Que ótimo! Posso ir lá algum dia. Como faço pra ver você de novo? Estou encantado!
- Meu prédio não é onde fica a feirinha. Eu não vou ali.
- Mas você pode ir… Me ver.
E nessa hora aconteceu de novo. Não importa que fosse hippie cabeludo, muitos homens acham que uma mulher simpática que sorri é o mesmo que uma mulher que está dando mole. Comecei a ficar com medo.
-Olhe, eu tenho que ir.
-Ah moça, abraço é de graça, pegue um comigo antes de ir!
E quando ele ia me puxar, eu coloquei a mão impedindo.
- Eu tenho namorado e desculpe, eu tenho um compromisso, preciso ir.
- Não gostaria de uma companhia pra não andar sozinha?
- Não. Boa sorte a vocês todos.
E comecei a andar o mais rápido que eu podia. Aquela parecia uma situação realmente perigosa. A gente vê por aí os direitos das mulheres sendo defendidos, mas ainda assim é um tópico complicado de discutir. Lendo esses eventos que me ocorreram, o leitor vai, com razão, achar que eu sou idiota e que não fui cuidadosa. O ambiente ser extremamente público me ajudou nessas ocasiões, mas fiquei martelando na cabeça que eu simplesmente não sabia agir nessas situações.
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Eu tinha pensado em tirar uma foto na praia, mas descobri que meu sorriso tinha sumido.

Eu pretendia guardar de lembrança de hoje apenas uma foto da praia. Mas descobri que estava triste de certo modo comigo e por ter sido tão ingênua, por me ter faltado uma atitude mais firme de dizer que não queria ficar ouvindo baboseiras de estranhos. Tentei em vão tirar uma foto sorrindo, por estar na praia lavando minha cabeça, mas o que saiu foi essa careta, esse sorriso forçado da foto acima. É até um pouco terapêutico escrever esse desabafo, contar essa historia e tentar guardar na minha cabeça pra não agir de forma tola assim novamente. Isso pode ser um perigo para mim, afinal, estamos num mundo machista que não pode ver uma mulher sozinha que ela já se torna alvo. E o pior é que algumas até gostam e acham normal, que é coisa do sexo masculino. Normal isso pode até ser, porque as pessoas deixaram que se tornasse um padrão, mas não quer dizer que esteja certo.
Ao andar freneticamente rápido, fugindo de todas aquelas pessoas que vi e fatos que estranhei, pensei e pensei nessas coisas. E então lembrei que tinha que voltar ainda pra casa e não queria de jeito nenhum passar por eles novamente. Decidi me embrenhar por dentro das ruas de Boa Viagem para chegar em casa usando outro caminho. As ruas eram desertas e eu não sabia bem onde eu estava. Pela primeira vez tinha me arrependido de ir a praia.
No final, hoje ficou uma lição: devo ter cuidado ao andar sozinha. Pela orla de Boa Viagem ou por qualquer outro lugar que seja. Situações bizarras podem acontecer e acabar se desenvolvendo pra coisas perigosas. Qualquer um que leia esse post sabe que elas tem potencial pra se tornar algo bem ruim. De perseguições a abusos piores.
Citando a gloriosa música de Cássia Eller, fecho esse post.
“Quem sabe ainda sou uma garotinha!” e não sei ao certo como me defender.

2 comentários:

  1. Muito bom texto. E sim Dani, essa música é "muito você". Não deixa de escrever, abraçaço.

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